quarta-feira

UMA SOMBRA NAS TREVAS


   No interior de São Paulo, mais precisamente na Fazenda Caconde, Olimpio viveu sua miserável vida durante pouco mais de vinte anos.
Mestiço de índio com negro, era pobre como todos do lugar.  Filho de cortadores de cana nunca frequentou a escola, vivia isolado, não gostava das pessoas e estas não gostavam dele. Seu dia era dedicado a um isolamento de maldades como desafiar leis divinas e terrenas. Praticava furtos de todas as espécies, inclusive na igreja local onde até se embebedava com o vinho sagrado.
   As poucas pessoas que ouviram algum som saindo de sua boca relataram que só ouviram grunhidos de maldições lançados contra todas as criaturas e até ao criador. Alguns diziam que era um possuído por espíritos malignos, um maldito ser que atraia toda sorte de espíritos impuros para o nosso convívio.
   Velhos do lugar ainda se lembram daquele dia do mês de agosto quando gritos de terror foram ouvidos da casa dos pais de Olimpio, gritos de dor , medo, terror, ninguém se atreveu em saber o que se passava naquela casa, mas todos viram quando “ele” saiu correndo sem direção, como se procurasse por algo, até que diante da igreja que tantas vezes entrou para roubar, ele parou e olhou para todos que agora fervilhava a rua, um olhar de deboche e desprezo, entrou no templo e não mais saiu...
   Na casa de seus pais uma cena aterrorizante, pai e mãe decapitados por uma foice manchada pelo sangue daqueles que lhe presentearam com uma vida de demônio. Na igreja, o corpo de Olímpio foi encontrado em frente ao altar, estava de bruços, e ao ser virado percebeu-se que ele arrancara os próprios olhos com seus dedos, mas sua morte segundo o legista se deu por sufocação, ele engolira a própria língua. No enterro dos pais de Olimpio a fazenda toda compareceu, mas o seu foi uma triste caminhada obrigatória daqueles que carregavam seu caixão.
   Eu gostaria de terminar aqui esta história, mas o objetivo a ser alcançado enquanto escrevo não seria atingido! Infelizmente... Ela não acaba aqui...

   Este lugar, esta fazenda, foi onde nasci! Fui pra São Paulo ainda criança e poucas lembranças restaram do lugar, aliás, estas poucas lembranças eram alimentadas pelas histórias que meu avô contava. Eu gostava de ouvir as histórias relacionadas ao lugar onde nasci, e a história sobre Olimpio foi uma delas, o que eu não sabia, era que esta história me faria voltar a Caconde para uma missão que alguém em juízo perfeito jamais efetuaria.
   Na casa de meus avós, uma mulher sempre serviu a eles, uma serviçal que vivia em troca de comida e moradia. Acostumei-me com sua dedicação e solicitude em relação aos meus avós, mas nunca consegui ter um diálogo com ela, respondia minhas perguntas com sorrisos condescendentes e eu desistia de alongar a tentativa. Até porque, não tinha muito que dizer a uma pessoa que não demonstrava nenhum interesse em me ouvir.
   Numa tarde de sábado eu conversava com meu avô, dizia-lhe que gostaria de visitar a fazenda, ver de perto o cenário das histórias fantásticas que ele contava.
   A serviçal que estava por perto, num repente deixou de fazer o que estava fazendo para se aproximar de nós e, me encarando com um olhar onde se misturavam curiosidade e expectativa, me pediu:
   Se você for, poderia levar uma encomenda minha para alguém? Sei que seria um transtorno para o senhor, eu mesmo o faria se tivesse condição, mas como o senhor deve saber, eu sirvo a seus avós sem nenhum interesse financeiro, não tenho como pagar as passagens, no entanto, é de vital importância que esta encomenda chegue nas mãos de alguém.

  Agora não tinha como voltar atrás, aquela mulher simplesmente me empurrou para uma decisão, eu viajaria até Caconde. Pedi a ela que me entregasse a “encomenda”, uma caixa pequena e lacrada, quando a segurei em minhas mãos pareceu-me um enorme fardo, e a sensação que tive é que um vento gelado percorreu minha espinha provocando um calafrio. Ela percebeu meu mal estar e rapidamente disse que eu deveria procurar por Ambrósio, o negro, e entregar-lhe a caixa.

   Narrar as peripécias que uma viagem que normalmente durariam quatro horas mas que duraram nove, seria prolongar demais a narrativa desta história. Prefiro dizer que cheguei bem ao município de Tapiratiba, uma cidadezinha próxima da fazenda. A ideia era pernoitar em um quarto de hotel e no dia seguinte bem cedo ir pra fazenda.
   Era uma sexta feira do mês de agosto...
   No sábado pela manhã fui até a fazenda onde, frente ao engenho de açúcar, perguntei por Ambrósio, a pessoa  me indicou alguém  um pouco adiante de nós, alguém que me olhava e sorria. Me aproximei e me apresentei, mas antes que pudesse dizer alguma coisa ele disse que “graças a Deus” eu havia chegado a tempo, ele estava ali a minha espera.
_Trouxe a encomenda? –Respondi que sim e me apressei a entregar-lhe aquela misteriosa caixa.
_Não está curioso em saber o que ela contém?
_Claro que sim! Mas isto não seria muito gentil de minha parte.
_Não se preocupe com gentilezas, a pessoa que lhe confiou esta missão certamente confia no senhor, nada mais justo que o senhor saber  toda a verdade contida nesta caixa.
   Confesso que estava assustado com o que estava por vir, mas afinal, não era para ver o cenário de alguma história fantástica? Imagina então ter a oportunidade de presenciar ao vivo o desfecho de uma?
   Enquanto caminhávamos até sua casa, Ambrósio esclarecia os mistérios em torno de uma história que nunca saíra de minha mente desde que meu avô me contara.

_Certamente você está a par da história de Olimpio, um espírito maligno que viveu entre nós. Mas o que você não sabe é que esta história vai muito além do que lhe foi contado ou que as pessoas do lugar tem conhecimento.

_Pra começar, algo que certamente vai lhe chocar! A mulher que me mandou esta caixa é Alzira, irmã gêmea de Olimpio, ela estava em São Paulo como uma fugitiva do próprio irmão. Foi para protegê-la que foi enviada pra capital e o que ela me mandou, esta caixa, você saberá o conteúdo em breve.
   Puxa! Imaginem como estava minha cabeça neste ainda começo de história, mas eu precisava saber mais detalhes para montar o quebra cabeça que se desenhava em meu cérebro, então perguntei:
_Mas se Olimpio morreu a mais de vinte anos, porque Alzira não voltou?
_ Pra começar Olimpio não morreu como todos pensam, aliás, ele nunca vai morrer, não como conhecemos a morte. Olimpio será sempre um ser errante, um espírito das trevas, um espírito que nunca evoluiu desde seu nascimento no começo do mundo. Mas voltando aos acontecimentos daquele dia fatídico de mais de vinte anos, mais precisamente vinte e três anos completados no dia de hoje e a mesma idade em que ele vivera até então.
_ Após o assassinato de seus pais, Olimpio correu até a igreja onde arrancou seus olhos e engoliu a própria língua dando a entender a todos que havia morrido. O padre Onofre que era o pároco local na época, não queria que o corpo de Olimpio fosse enterrado num campo santo e, me conhecendo como me conhecia, ou seja, de criação afro indígena brasileiro e tudo quanto isto pode significar de conhecimento das forças do além, pediu-me ajuda para um projeto que contou também com dois amigos indígenas que não estão mais entre nós.
 _Colocamos o corpo de Olimpio num tosco caixão e o levamos para a floresta, o caixão pesava cada vez mais, tivemos que parar por várias vezes para descansar, até que num determinado momento já não tínhamos forças para continuar. Ele não queria ser enterrado... Procuramos por uma figueira e tiramos o corpo de Olimpio do caixão, pensávamos que ele se tornara um “corpo seco” e por isso, o amarramos na árvore e surramos seu corpo com ramos de guanxuma. Mas o que temíamos aconteceu, o corpo ficou ainda mais pesado e chegamos a conclusão que a coisa era mais séria, não era um “corpo seco” e sim um espírito maligno que nunca morre, podíamos sentir seu coração batendo.
_Por fim, você saberá o final desta história quando a noite se aproximar ou, assim espero.
  Aproveitei o tempo que restava para nossa aventura para por as ideias em ordem, o que eu pensava de tudo isto? Eu não sabia...
   Sete horas da noite daquele sábado, Ambrósio, padre Onofre e eu, entrávamos na floresta, estávamos no fim do inverno e o frio que eu sentia era só de medo. Eu procurava varar com meus olhos a escuridão da mata, mas nada enxergava além das árvores em torno de nós quando passávamos. Derrepente o silêncio tomou conta do lugar, nada de pássaros noturnos ou qualquer pio se ouvia. Era o lugar, eu olhava pra cima, para a copa da figueira sem frutos e só aos poucos fui criando coragem para olhar para a figura tétrica que se encontrava junto ao tronco.
    Muito a contragosto tive que ajudar meus dois companheiros a colocar os restos de Olimpio dentro de um saco e então revezávamos no transporte que curiosamente não estava tão pesado como chaguei a pensar.
   Fomos para a igreja onde segundo padre Onofre seria realizado os últimos preparativos para a viagem, agora de Olimpio.
   Com o esqueleto colocado sobre uma mesa, Ambrósio pegou a caixa que eu trouxera dizendo:
_Agora você saberá o que realmente era a encomenda que o fez vir até aqui. Depois de quebrar o lacre, ele abriu a tampa e retirou uma nova caixa, agora de chumbo e ao abri-la, senti faltar força nas pernas para me manter em pé diante da visão de um coração humano que ainda batia.
   Padre Onofre alojou o coração no tórax do esqueleto de Olimpio e novamente saímos em caminhada carregando nosso fardo rumo ao cemitério.
   Depois de enterrarmos nossa carga, sem que houvesse qualquer identificação ou até mesmo uma cruz, padre Onofre, talvez por força do hábito, proferiu uma oração. Nossa missão terminara.
   Fique mais uns dias na fazenda, visitei algumas pessoas que conheceram minha família e tive o relato completo de Ambrósio sobre aquela história da qual tive participação no final.
   O coração de Olimpio permaneceu cativo por mais de vinte anos, o mesmo tempo que ele esteve vivo, Alzira foi a sua guardiã durante esta “expiação” e finalmente agora poderia voltar a ser pó, estava encerrada sua passagem entre nós por enquanto.
   Na minha volta, ainda na estação de trem, passeei meu olhar pela fazenda. Um lugar que ainda tinha muitas histórias para contar. Deixei aquele lugar sabendo que na escuridão de suas noites, sombras se moviam nas trevas...
FIM




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